Livro de Mariana Ramos de Morais, foi lançado em BH, Nas teias do sagrado refaz as trilhas da religiosidade afro-brasileira no país e, especialmente, em Belo Horizonte.
Por: João Paulo.
“Se um tambor toca longe, ecoa dentro de mim”. É assim que Mariana Ramos de Morais abre seu livro Nas teias do sagrado – Registros da religiosidade afro-brasileira em Belo Horizonte, que ela lança no Café com Letras. A autora parece sintetizar com suas palavras a experiência de muitos mineiros que, mesmo sem saber, têm na memória a marca das tradições africanas, traduzidas em cultos do catolicismo popular, como o congado, a rítmica da música popular, e a sensibilidade para o mistério. Foi para buscar as origens desse sentimento que a jornalista Mariana Ramos se aprofundou em pesquisas nos campos da ciência social e da antropologia. O livro é uma etapa nesse projeto de traduzir em reflexão intelectual uma experiência de ordem pessoal.
Nas teias do sagrado é ao mesmo tempo um livro de história e uma investigação antropológica. Em outras palavras, uma tentativa de sintetizar as informações que dão conta da origem das religiões afro-brasileiras, em seu nascedouro e desenvolvimento através dos séculos, e uma busca de compreensão da dimensão simbólica dos cultos. Além disso, em vários momentos, Mariana Ramos aponta a tendência ao preconceito que cerca o calundu, o candomblé e a umbanda, desde os tempos coloniais até nossos dias. Assim, ao mesmo tempo em que promove uma introdução informativa e didática, compromete o leitor com sua consciência do que considera, de fato, tolerância e liberdade de crença.
O livro está dividido em duas seções. Na primeira, “Magia afro-brasileira”, a autora vai ao século 16 para descrever os primeiros registros dos cultos operados pelos negros. Já nessa origem, com o calundu, o olhar da Igreja e das elites políticas e econômicas evidencia a discriminação, considerando os praticantes feiticeiros. Mariana explica que, em religião, não se pode ter uma visão estática, como se houvesse uma crença pura e imutável no tempo. Por isso, não seria correto afirmar que o calundu é uma base, com seus ritos e valores, que seriam depois transformados em candomblé e umbanda, cada uma delas com sua ortodoxia singular. São expressões dinâmicas, que muitas convivem entre si, intercambiando valores e símbolos.
A inserção histórica das religiões afro-brasileiras, nesse sentido, expressa a própria sociedade. Um tempo de escravidão, desigualdade, patriarcalismo e de Estado oficialmente católico – tudo isso abre o flanco para uma desvalorização de uma religiosidade que aponta para outros elementos de constituição da sociedade. A isso se soma o grande desconhecimento – ou certa ignorância petulante – que descarta outras visões de mundo em favor da manutenção do status vigente.
Ainda na primeira parte do livro, Mariana Ramos estuda o surgimento do candomblé, mostra a hegemonia dessa expressão na Bahia, o candomblé nagô, e acompanha o trânsito da crença dos orixás entre as diversas nações da África aos diferentes pontos do Brasil. Um fato para o qual é preciso chamar a atenção, como destaca a pesquisadora, é a presença, desde os primeiros momentos, de pessoas de todas as cores e classes sociais nas religiões afro-brasileiras. No entanto, essa mescla, que poderia parecer uma abertura à tolerância, muitas vezes se mostrou um motivo a mais para a recusa dos credos.
Se o candomblé é uma religião africana em origem, a umbanda se constitui no Brasil uma autêntica crença da unidade nacional, reproduzindo em sua formulação as três vertentes da nacionalidade brasileira. Na umbanda se juntam os elementos das três raças, espelhando o mito da democracia racial. Assim, estão presentes nos cultos umbandistas a herança dos negros (orixás do candomblé), dos brancos (o espiritismo kardecista e o catolicismo popular) e as fontes da cultura indígena. Manifestação mais recente, a umbanda se mostra ainda interessada em codificar seus ritos e interpretações, gerando uma literatura teórica expressiva.
Nova capital
A segunda parte do livro, “Belo Horizonte nas trilhas da fé afro-brasileira”, mostra como, na nova capital, ocorreu uma inversão em relação às outras regiões do país. Aqui, a umbanda chega antes do candomblé. A cidade viu surgir e fortalecer os terreiros com seus exus e pretos velhos, bem antes da fixação das casas dos orixás. Esse fato pode ser explicado pela forte presença do congado (outra manifestação de origem africana que se liga ao catolicismo popular) e do espiritismo kardecista em nosso meio.
O candomblé, quando surge na capital, tem outro perfil. Se na Bahia a religião dos africanos era uma forma de resistência, em Belo Horizonte, já no século 20, aparece como um tipo de apoio aos serviços que já eram prestados nos terreiros de umbanda aos seus fiéis. Assim, quando chega a BH, o candomblé, mesmo com o preconceito ainda presente, já é uma religião que conquistou respeito, com adeptos importantes, sobretudo na Bahia e no Rio de Janeiro, que ajudaram a ampliar o clima de tolerância. Nesse momento, as crenças afro-brasileiras já faziam parte da cultura, sobretudo na música popular, sendo objeto de pesquisas acadêmicas, congressos nacionais e, inclusive, ocupando espaço público com imagens em praças, criação de festivais e outros eventos de massa.
Democracia frouxa
Mariana Ramos acredita que o conhecimento é uma arma eficiente contra a discriminação. “No Brasil, o preconceito contra as religiões afro-brasileiras já foi do próprio Estado, da Igreja Católica e, mais recentemente, por parte dos evangélicos neopentecostais”, explica. E lembra que, mesmo os evangélicos que demonizam os cultos africanos usam de linguagem que vem de seu repertório, com pastores usando práticas como fogueira santa e descarrego, que evidenciam o trânsito com os ritos umbandistas.
Para a pesquisadora e jornalista, o debate eleitoral deste ano, com o desvio das questões políticas para temas de ordem da consciência individual, é prova de um descompasso. “O Brasil tem uma democracia política que convive com esses equívocos”, pondera, ressaltando que a responsabilidade está difusa em toda a sociedade, até mesmo na imprensa, que absorveu essa linha de debate.
Mariana cobra das universidades mineiras a criação de centros de estudos específicos para a cultura afro-brasileira, como existem na Bahia e em São Paulo. E anuncia sua próxima pesquisa: “Quero refletir sobre a transformação das religiões afro-brasileiras em manifestações culturais, inclusive com apoio do Estado”. Se é caso de forma sutil de denegação da transcendência ela prefere não antecipar: “Estou começando a pesquisa”, afirma.
Nas teias do sagrado – Registros da religiosidade afro-brasileira em Belo Horizonte Lançamento do livro de Mariana Ramos de Morais,no Café com Letras, Rua Antônio de Albuquerque, 781, Savassi.
Fonte: uai.com.br
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